Carta Parcial de Conclusões

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Instituto Sou da Paz e o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo estão coordenando um ciclo nacional de encontros denominados Diálogos Públicos - Ministério Público e Sociedade – Polícia Democrática e Direito à Segurança. Uma primeira rodada foi realizada em São Paulo, nos dias 16 e 17 de março de 2016, com a coorganização da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado de São Paulo. Uma segunda jornada foi concretizada no Rio de Janeiro, nos dias 1 e 2 de dezembro de 2016, em iniciativa compartilhada com o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio de Janeiro.

Há, até agora, uma soma de 4 dias intensos de exposições e debates, acompanhados presencialmente por aproximadamente 300 pessoas, dentre integrantes dos Ministérios Públicos federal e estaduais, das Defensorias Públicas, das Polícias Militares e Civis, das Guardas Civis Metropolitanas e de organizações da sociedade civil, assim como de jornalistas, professores, profissionais de segurança pública e estudantes.

Mediante um diálogo plural, fruto da diversidade de expositores, bem como da privilegiada interação com a audiência, os Diálogos Públicos ampliam e aprofundam o debate democrático sobre as causas e consequências dos altíssimos índices de violência no País em geral, da violência estatal em particular, e, não menos importante, da violência contra os profissionais de segurança pública. Ampliam e aprofundam também o debate acerca do papel e das mudanças necessárias às diferentes instituições do sistema de justiça e segurança responsáveis pelos temas debatidos, de forma a dotá-las de maior efetividade no cumprimento de suas tarefas.

Mais do que uma discussão teórica ou abstrata sobre a segurança pública no País, os Diálogos Públicos buscam enfatizar a apresentação de recomendações para a superação do atual cenário de altíssimos índices de violência, ineficácia do sistema de justiça – em especial no tocante a crimes violentos –, letalidade estatal e vulnerabilidade do profissional de segurança pública.

O ciclo de Diálogos Públicos Ministério Público e Sociedade - Polícia Democrática e Direito à Segurança é um processo dinâmico, o qual, a cada rodada, rediscute temas da mais alta relevância para os sistemas de justiça e de segurança pública e agrega novas perspectivas, especialmente pela diferença das experiências regionais e pelo ingresso de novos atores.

O objetivo final é percorrer Estados das cinco regiões brasileiras e, com um debate saudável entre profissionais de distintas instituições, sociedade civil e academia, ir paulatinamente construindo uma Carta de Recomendações para a afirmação de um modelo de polícia democrática no País, comprometida com a garantia do direito à segurança de todos os cidadãos, o que, por sua vez, remete também a uma discussão sobre o papel das instituições do sistema de justiça na promoção da política criminal.

Com uma crescente legitimidade e profundidade, após cada rodada é possível consolidar reflexões e conclusões parciais, que funcionam também como pontos de apoio para as jornadas subsequentes. Ou seja, os organizadores esperam cada vez mais mobilizar partes interessadas na inadiável tarefa de apontar soluções – despidas de interesses corporativos – para ultrapassar o quadro de violência endêmica no País e de baixíssima resolutividade da persecução penal de crimes graves.

ASSIM, os organizadores apresentam a presente Carta Parcial de Conclusões dos Diálogos Públicos Ministério Público e Sociedade – Polícia Democrática e Direito à Segurança – Rodadas São Paulo e Rio de Janeiro, com as seguintes reflexões:

O Brasil possui uma democracia jovem. A herança do nosso passado autoritário, sobretudo dos períodos mais recentes, ainda foi pouco discutida, apesar do importante trabalho de resgate realizado pela Comissão Nacional da Verdade e comissões estaduais da verdade, que apresentaram pontos relevantes a serem superados na construção, enraizamento e capilaridade das instituições substancialmente democráticas.

A omissão é especialmente grave quanto à segurança pública. É premente a necessidade da sociedade brasileira discuti-la, levando em consideração a situação das diversas instituições que compõem o sistema de segurança pública e justiça, mediante um diálogo democrático entre todos os atores envolvidos e, principalmente, a sociedade. Debate extremamente urgente, apesar de difícil – frente à herança de baixa permeabilidade destas instituições, do incipiente hábito de participação da sociedade e de uma visão limitada da segurança pública como “coisa de polícia”.

Os desafios, sem dúvidas, são inúmeros. Os homicídios representam hoje um dos maiores problemas sociais do Brasil, limitando severamente o exercício de direitos fundamentais do cidadão e reclamando iniciativas das esferas federal, estadual e municipal. Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas, 11% dos homicídios no mundo, em 2012, ocorreram no país, sendo que somente 2,9% da população mundial vive no Brasil. Em números absolutos, o Brasil ocupou a primeira posição no ranking mundial de homicídios do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC) em 2012.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve 58.467 mortes violentas intencionais no Brasil em 2015, ou seja, 28,6 pessoas por 100 mil habitantes.

Parte importante destas mortes foi cometida pelas forças do Estado, as quais, segundo o mesmo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, responderam por 3.320 mortes em 2015, sendo este número maior do que o de vítimas de latrocínio ou de lesão corporal seguida de morte. A outra face deste trágico cenário é a vitimização de policiais: 358 profissionais perderam sua vida no mesmo ano, ainda que majoritariamente fora de serviço. Entre esses casos, embora os dados disponíveis não permitam mensurar com exatidão, estão contidas execuções de policiais, policiais que estavam atuando na segurança privada no momento em que foram mortos, policiais que reagiram a uma ofensa criminal contra terceiros, e casos não diretamente relacionados com atuação em segurança ou com sua condição de policial, como por exemplo em casos de latrocínio.

Esses dados explicitam que o mesmo Estado que tem dificuldade em controlar o uso da força letal por seus agentes também falha em garantir cuidado e proteção aos seus profissionais, os quais ainda padecem do desrespeito aos seus direitos no exercício da profissão (jornadas de trabalho mal dimensionadas ou excessivas, falta de materiais de proteção individual, violação de direitos humanos nas atividades de formação e treinamento, dentre outros).

As respostas das instituições de segurança pública e justiça frente a crimes tão graves quanto tirar a vida de alguém têm sido claramente insuficientes. Uma face gritante da incapacidade do país em identificar e punir perpetradores de homicídios é que não se sabe sequer qual é a taxa de esclarecimento deste crime. As poucas tentativas realizadas para aferir este dado chegam a preocupantes 8% de esclarecimento. Ou seja, a impunidade é a regra. Sem dúvida alguma a fase investigativa da persecução penal é ineficiente, em parte porque realizada mediante um procedimento que é gerido burocraticamente, e em outra parte, porque a polícia judiciária e o Ministério Público não interagem adequadamente para elucidar os crimes e suas autorias. A baixa resolutividade do sistema de justiça termina por, indiretamente, estimular condutas ilegais e violadoras de direitos humanos, tais como execuções sumárias por forças policiais ou grupos de extermínio. Ou seja, o mal funcionamento do sistema de justiça é, por um lado, uma das causas concorrentes para a violência estatal. E, por outro lado, para a insegurança em geral.

Não obstante essa enorme falta de suficiente apuração e punição dos crimes de homicídio, o país ultrapassou a marca de 622 mil presos, atingindo uma taxa de 306 presos por 100 mil habitantes (enquanto a taxa mundial é de 144). No entanto, apenas 10% deles se encontram encarcerados pelo crime de homicídio. O sistema penitenciário termina por ser um fator de aumento da criminalidade, ao invés de política vocacionada à sua redução. O encarceramento em larga escala de presos cautelares (41% dos reclusos) e de jovens envolvidos em crimes sem violência (56% dos presos são jovens; 27% está preso por tráfico de drogas) é inesgotável fonte de recursos humanos (vidas humanas) para as organizações criminosas. O preso novato e de baixa periculosidade, ao entrar em presídios dominados por facções criminosas, é compelido a aderir a uma delas. A sua sobrevivência na prisão dependerá de envolver-se mais profundamente com a criminalidade. A consequência do encarceramento é, pois, o fortalecimento dessas organizações e o aumento da espiral de violência, dentro e fora dos estabelecimentos prisionais.

Na mesma esteira, e agravando mais este cenário de crise, a falta de confiança nas instituições estatais foi aferida em pesquisa de 2015 da Fundação Getúlio Vargas, segundo a qual apenas 33% das pessoas afirmaram confiar nas polícias, 45% no Ministério Público e 25% no Judiciário. Esta desconfiança, somada ao medo e à indignação da população frente ao serviço prestado, produz um indesejável apoio popular a medidas ilegais e incompatíveis com o Estado de Direito e a democracia, tais como execuções sumárias por forças policiais, linchamentos e privatização da segurança e dos espaços públicos.

Já passa, pois, do tempo de se promover uma reforma institucional da segurança pública no País, que tenha como fundamento a responsividade dos serviços estatais à sociedade civil na sua integralidade, e não apenas aos grupos política ou socialmente mais privilegiados. Essa reforma demanda um entendimento nacional que respeite os interesses legítimos de todas as expressões sociais e envolva as lideranças políticas, os profissionais de segurança de todas as carreiras e a sociedade civil. Um entendimento que não seja dominado por disputas corporativas, mas sim pautado no reconhecimento da corresponsabilidade da esfera pública e privada pela superação da falência do modelo atual de segurança pública e, sobretudo, pelos papéis que as polícias, o Ministério Público e o Judiciário devem desempenhar para alcançarmos um padrão de segurança eficaz, democrático e comprometido com o respeito aos direitos dos cidadãos.

Como estímulo ao início desse debate, e com base nas exposições e discussões realizadas, os organizadores dos Diálogos Públicos APONTAM as seguintes medidas para reforçar o direito à segurança pública e o processo de consolidação de um modelo de polícia democrática no país:

QUANTO À EFICIÊNCIA E EFICÁCIA DA PERSECUÇÃO CRIMINAL/RESPOSTA DO ESTADO AO CRIME

- Reestruturar o trabalho de investigação através da implementação de algumas medidas: redução da burocracia, mediante simplificação da produção, transmissão e arquivamento de documentos e valorização do uso de tecnologias apropriadas; redefinição do papel e do procedimento do inquérito policial na investigação criminal, inclusive quanto à sua própria necessidade de existir; concentração da atividade investigativa na realização de diligências úteis à resolução dos crimes; aproximação do Ministério Público da investigação, de modo a obter uma colheita de provas mais justa e adequada às necessidades da acusação.

- Garantir a capacitação e autonomia dos órgãos de perícia técnica.

- Ampliar o uso de protocolos de investigação.

- Consolidar o modelo do devido processo legal acusatório, com a separação rígida das funções de acusação, defesa e julgamento, e banindo-se da legislação e da prática judicial os resíduos de funções inquisitoriais exercidas pelo Judiciário. Deve ser reforçado que o papel do juiz na fase investigativa da persecução penal é de controle, especialmente para garantir os direitos dos investigados. Entretanto, é função igualmente central do Judiciário na referida atividade de controle da investigação penal assegurar a celeridade e eficácia do procedimento, atendendo, desse modo, aos direitos das vítimas e da coletividade à investigação e responsabilização de autores de crimes graves, ainda mais quando relacionados com a violação de direitos humanos.

- Construir e acompanhar um indicador nacional de elucidação de homicídios.

QUANTO À POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA E PRISIONAL

- Repactuar a competência dos três entes federativos na segurança pública, sobretudo no que se refere ao papel da União na coordenação e indução de políticas. Deve ser fixada a responsabilidade federal de produzir conhecimento, informação e avaliação sobre o fenômeno da violência e sobre as respectivas ações estatais de prevenção e reação.

- Reconhecer que a política de guerra às drogas é incapaz de impedir a expansão e consolidação do consumo,obstaculiza a adoção de políticas mais efetivas de saúde para lidar com o fenômeno do vício e contribui diretamente para a violência decorrente da disputa de pontos de venda por organizações criminosas, a violência estatal repressiva e a corrupção de agentes públicos.

- Redefinir, pois, a política criminal sobre drogas, eliminando-se a prisão de acusados ou condenados por condutas não-violentas, especialmente os flagrados portando entorpecentes ou pequenos traficantes, sem prejuízo de uma ampla discussão sobre a conveniência de descriminalizar o uso e a venda de drogas em toda a sua extensão.

- Reduzir a população carcerária relacionada a crimes de menor gravidade, priorizando, quando cabível, o uso de penas alternativas.

- Assegurar o cumprimento da determinação legal que impede a prisão cautelar quando for cabível a aplicação de outra medida cautelar.

- Tornar indevida a determinação da prisão cautelar quando o crime praticado em concreto apontar para uma provável sanção menos gravosa do que a pena privativa da liberdade.

- Priorizar os recursos da segurança pública para a prevenção dos homicídios, bem como para a investigação deste e de outros crimes graves.

- Prover os agentes penitenciários de condições mínimas de dignidade, formação e condições de trabalho.

- Ampliar a presença de representantes das comunidades mais afetadas pela violência (em geral, a periferia pobre das grandes cidades) na formulação da política pública de segurança.

QUANTO À VIOLÊNCIA ESTATAL

- Estabelecer que o Ministério Público deve acompanhar, desde o início, todas as notícias e investigações de mortes decorrentes de confronto policial e de tortura, com a designação de promotores e equipes de apoio que devem comparecer ao local dos fatos e interagir com a produção das provas, sempre que as condições de acessibilidade e segurança permitirem. O Ministério Público deve buscar conhecer as testemunhas e garantir a possibilidade de prestarem depoimentos fora do ambiente policial quando elas se sentirem constrangidas.

- Constituir nos Ministérios Públicos observatórios de acompanhamento de casos de mortes decorrentes de intervenção policial, em associação com pesquisadores independentes e a sociedade civil, ampliando a transparência sobre a investigação criminal e a sua própria atuação nesses casos.

- Garantir e exigir que o Ministério Publico exerça eficazmente o controle externo da atividade policial, nas vertentes difusas e concentrada, com a prestação de contas de sua atuação em órgãos de controle social.

QUANTO À VULNERABILIDADE DO PROFISSIONAL DE SEGURANÇA

- Rever as normas de disciplina, notadamente as militares, para remover regras desproporcionais, autoritárias e incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

- Garantir serviços de atenção à saúde física e mental aos profissionais de segurança pública, compatíveis com a periculosidade da função e o estresse relacionado a eventos com vítimas de violência.

- Reconhecer e enfrentar objetivamente as violações específicas sofridas pela mulher profissional de segurança pública, sobretudo a discriminação e o assédio moral e sexual.

- Valorizar e incluir o profissional de segurança pública, de todos os níveis, funções e hierarquias, nos processos de discussão de reformas institucionais.

- Estabelecer que o Ministério Público deve acompanhar, desde o início, todas as notícias e investigações de mortes de policiais em serviço e fora de serviço com indícios de execução, com a designação de promotores e equipes de apoio que devem comparecer ao local dos fatos e interagir com a produção das provas.

QUANTO À CONSOLIDAÇÃO DE UMA POLÍCIA DEMOCRÁTICA

- Instituir mecanismos de controle social, político e judicial das instituições de segurança pública, garantindo que as polícias sejam responsivas à sociedade civil, transparentes e obrigadas à prestação de contas de suas atividades.

- Fortalecer que a missão da polícia é a proteção da cidadania, e não o combate a inimigos internos.

- Rever as normas infraconstitucionais reguladoras da atividade policial herdadas do regime militar, para adequá-las ao paradigma da Constituição de 1988.



- Aprofundar a discussão sobre a organização do sistema policial e o ciclo completo de polícia, haja vista, de um lado, os malefícios gerados pelas cisões corporativas entre as duas forças policiais, os altos custos em manter essas forças separadas e a disfuncionalidade que geram para a persecução penal, bem como, por outro lado, os riscos à estabilidade democrática decorrentes da constituição de uma força única, com potencial para constranger governos eleitos e outras instituições.

- Reanalisar o nível e a extensão da militarização de parcela expressiva das atividades de segurança pública.

- Definir a obrigação dos gestores de segurança de publicarem, periodicamente e de forma acessível, informações estatísticas relativas às infrações e ocorrências criminais e a indicadores de produtividade policial em cada unidade da federação.

Organizadores nacionais

Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Instituto Sou da Paz
Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo

Organizadores regionais

- Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo
- Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
- Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Rio de Janeiro